segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Parabéns tão públicos quanto possível.

10h30 da manhã, instalo-me com um dos livros de turno (o último Salman Rushdie, a resvalar bocejantemente para o medíocre) na esplanada das minhas leituras. Ainda vazia do horroroso turistame que se diverte a achar as vistas "beyond belief", enquanto lança guinchinhos tão incompreensíveis quanto incomodativos, para o éter. Pedido o café, mergulho de novo na história de Nero Golden. Não tinham passado 10 minutos e uma voz feminina aproxima-se da minha orelha e sussurra-me: cá está o senhor com uma das suas milhares de amantes! A voz soou-me familiar, confesso. Terei levado alguns segundos a virar os olhos para a origem daquela blasfémia. Visão que me fez rasgar um sorriso como há muito não acontecia. Era a P., uma simpaticíssima brasileira que trabalhou naquele lugar e que deixei de ver de há uma boa dezena de anos a esta parte. Fazia-se acompanhar pelo marido, cidadão francês de boa cêpa e catedrático no Instituto de Estudos Políticos de Estrasburgo. Convidados a juntarem-se-me, abriu hostilidades com uma frase que me soou a quase-acusação: finalmente, quis o destino que conhecesse o homem de quem a P. tanto falava e fala, desde que a conheço! Lancei um olhar meio confuso, sem alvo definido. As sonoras gargalhadas que soltaram, cruzavam-se com o meu sorriso, a pender desconfortavelmente para o amarelo. Aí entra a P. que, num repente, me remove da minha miséria e me esclarece. De tal forma o fez que conseguiu comover-me. A história conta-se em duas palavras. Há uma boa dúzia de anos, deu-me para reler a biografia de Salazar pela pena de Franco Nogueira. Claro que algumas daquelas gloriosas manhãs de leitura foram passadas naquela esplanada. Já lhe tinha percebido a curiosidade. Um belo dia, passada a vergonha, arrisca a abordagem. Gostava de conhecer a vida e a obra desse homem de quem tanto ouvi falar no Brasil, e de quem continuo a ouvir falar...
Pressenti o que se iria seguir!
Para mim, emprestar livros é assim como alguém propor-se arrancar-me as unhas sem anestesia. Mas aquele sorriso desarmou-me. E resolvi arriscar, também. Ao longo de um período de 4 ou 5 meses, fui-lhe passando os seis volumes. Nunca falhou uma devolução. Quando me entrega o último tomo, tem um desabafo que nunca mais esqueci. Tomara o Brasil ter tido, ao longo da sua história, um homem como este. Eu não estaria aqui e o meu país não estaria onde está. Para mim, ficou feita a resenha de um período político em Portugal. Em busca de melhor vida, as curvas da estrada levaram-na a Estrasburgo. Dois anos depois tenta uma primeira vez entrar no Instituto referido acima, coisa que, reconhecidamente, não é fácil. Nem mesmo para nativos. Entrou à segunda tentativa. O terceiro ano do curso foi feito em Georgetown (onde aturou umas aulas ministradas por Durão Barroso) a expensas da própria universidade. Mais dois anos e obteve o Master em Sciences Po. Resultado: foi onde conheceu o marido (seu professor) e onde prepara uma tese de doutoramento sobre...adivinhem. Já estou a salivar pela leitura. Conta defendê-la em 2020. 
Percebem agora o meu comover-me? Um pequeno risco da minha parte que desencadeou um caminhar glorioso para alguém. 
Momentos que valem por uma vida. Há sempre uma luz no meio da escuridão geral.