quinta-feira, 22 de outubro de 2009

10 de Junho de 1995


Isto de fazer zappings televisivos nocturnos dá nestas coisas.
Estacionei na RTP Memória, onde me deliciei a ouvir vozes de Coimbra que, há muito, tinham escorregado para o lado do esquecimento. Luis Goes, Machado Soares e Luis Marinho, entre outros.
Quando as memórias se começam a entrelaçar umas nas outras, acabam sempre por surgir coisas que nos fazem sorrir intimamente e nos empurram para a saudade, independentemente das circunstâncias.
Provavelmente a maioria das pessoas que passam por aqui, não saberão quem era a figura que encima este escrevinhanço. Eu também não, até 14 ou 15 de Junho de 1995. Ou melhor, o conhecimento que tinha dele, resumia-se aos "pés-de-página" dos livros de direito. Mais exactamente do Direito Comercial e dos Direitos Reais.
Era o Prof. Orlando de Carvalho, distintíssimo catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra. E digo era, porque teve a "lata" de morrer em Março 2000 - estava eu por Moçambique - sem me ter avisado préviamente. Tínhamos tido uma agradável (como sempre!) conversa telefónica, no início desse ano, já queixoso mas, ainda assim, bastamente "speedado".
Às 9h da manhã de 10 de Junho de 1995, entro gloriosamente no Hospital de Santa Maria com um belo de um enfarte do miocárdio. Começava bem a década dos 40!
Após 4 ou 5 dias de cuidados intensivos, sou transferido para uma enfermaria de quatro camas, três das quais já convenientemente ocupadas.
E quem era um dos "sortudos" que se me tinha antecipado? Esse mesmo que estão a pensar! Coube-me a cama que estava rigorosamente diante da dele.
Quem já passou por estes "apertos", sabe que o espaço de tempo que medeia entre o primeiro olhar e a primeira palavra, mede-se em segundos. Dois minutos depois, já todos nos tínhamos apresentado e feito o competente escrutínio às respectivas maleitas.
Resultado final, três "enfartados" recentes e um Orlando de Carvalho que aguardava pacientemente a colocação de um chip sub-cutâneo que lhe normalizaria as taquicardias. Já tinha sido premiado com um enfarte 25 anos antes.
Passámos de imediato à segunda fase. Apuramento das causas.
OC, tinha sido convidado para integrar - como arguente - um júri, que apreciaria e discutiria a tese de doutoramento de uma criatura muito conhecida e cujo nome me recuso a escrever. Por absoluto nojo. Oito dias depois, continuava a espumar indignação pelo facto da dita criatura ter ficado indiferente à "aprovação", com duas bolas pretas em cinco!
Faz gala, de se fazer tratar sempre por Senhor Professor! O miserável.
O Orlando - exigiu que o tratassemos sempre assim! - recebia as visitas sempre fora de horas. Bem, eu também recebia algumas... e muito me azucrinou o juízo à conta disso!...
Básicamente, passámos uma dúzia de dias a resmungar um com o outro. Ele, um comunista confesso e eu, como já devem ter certamente percebido, um "militante" da direita cavernícula. Bastavam uns segundos para que as nossas conversas passassem para duas oitavas acima. As enfermarias vizinhas "despejavam-se" para a nossa, as enfermeiras passavam mais tempo ali do que a trabalhar, fizèmos greve de fome e à medicação durante dois dias, para desespero dos médicos ( o António Vaz Carneiro, se não deu em maluco naqueles dias, já não vai dar!), tal era a qualidade das vitualhas que nos punham diante das fuças!
Tenho realmente saudades das "maluqueiras" daqueles dias. Passaram num foguete.
O que não passou num foguete foi a amizade que ficou, os almoços em casa dele, em Santa Marinha do Zêzere, tudo o que aprendi com ele, tudo o que ele aprendeu comigo, tudo o que ainda me poderia ter ensinado e, macacão, resolveu guardar para outra oportunidade.
Porra Orlando, como é que um comunista me consegue comover? Saravah, meu velho!