sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O joaquimita.

Recente passagem por livraria, daquelas que ainda cheiram a papel, obrigou-me a deixar escorregar o olhar por sobre a focinheira de Agostinho da Silva. Homem que sempre em mim, teve o condão de exercer um estranho fascínio. Não tanto pelo que deixou escrito - genéricamente chato - quanto pela vadiagem que sempre norteou a sua existência. E mesmo nesta, apenas a mental. Porque na geográfica, peço meças. Ser vadio de si próprio deveria ser o objectivo sólido e último de qualquer plantígrado que se preze. E nisso foi mestre.
Topo pois com uma biografia do dito cujo, grafada por António Cândido Franco de quem, e juro à fé de quem sou, nunca tinha tido notícia. Defeito meu, por certo.
Mercadejada a prosa, recolho a penates. Diz-me a badana que o escriba foi bolçado neste mundo, corria o mesmo ano que também me viu a mim. Ensino à antiga, portanto. A coisa promete...
Mais me diz que o título foi "pé-de-cabreado" de uma estrofe do Canto V dos Lusíadas.
Feliz. Porque se lhe aplica que nem uma luva.
À terceira página tocam os alarmes. Estás a regressar a Aquilino. Sabes o que isso significa? 
Sei. 
Então, levanta o rabo e põe o "Aurélio" à ilharga. Porque vais precisar dele e muito. Outra circunstância digna de nota é o facto de fazer tábua rasa do neo-português, ora adoptado por decreto. Retomo o meu lugar e a leitura. 700 páginas de uma virada - comprida - não esqueçam o diccionário que, há muito, não era tão frenéticamente folheado.
Palúrdio, bolónio, entre outros apodos que Franco utiliza para se referir ao seu biografado parecem insultos, não é? Mas não são. São carinhos a saltar do teclado. Só se pode ser carinhoso com o homem que, um dia, menos pernóstico do que o habitual, responde assim a uma qualquer questão sobre António Nobre: "...um pobre diabo que depositou a melancolia num banco, a prazo, e viveu dos juros...". Só se pode ser meigo para com quem, em momento azado, fez saber que "não estava na disposição de enterrar o presente, para ressuscitar o passado.". Só se pode ser afectuoso para com quem, algures no tempo, referindo-se a Montaigne verteu como segue: "Um autor vive, não pelo número de estátuas que a sua capacidade de intriga assegura junto dos vindouros, mas da força equilibrante que a sua palavra desencadeia em quem o lê".
Por tudo isso - e muito mais - foi um eterno proscrito. E lembro-me da última proscrição, esta perpetrada pelo filósofo cor-de-rosa Carrilho quando, com empáfia ignorante, afirmou, sem se rir, que o tal de palúrdio, não tinha obra que se visse.
Pois.
Respondo-lhe com palavras dele. Do "sem obra". "Leia Séneca e roa chouriça...".
E já agora, ponham os nóveis jornalistas que enxameiam redacções a ler este livro. Aprenderiam mais nele do que uma vida inteira a tentar perceber o que se passa à volta deles.